quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Jobim mentiu
23/09/2008
Leandro Fortes

O que aconteceria em um país de democracia consolidada se um ministro acusasse sem provas um colega de governo de poder grampear autoridades e esconder o fato do presidente da República? No Brasil, não acontece nada. Faz duas semanas que o titular da Defesa, Nelson Jobim, obteve o afastamento do diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Paulo Lacerda, ao argumentar, durante uma reunião no Palácio do Planalto, que a autarquia tinha adquirido equipamentos capazes de interceptar telefonemas.
Jobim não exibiu nenhuma prova, mas conseguiu convencer Lula a afastar preventivamente Lacerda do posto menos de 48 horas após a revista Veja divulgar a transcrição de uma conversa supostamente grampeada entre o presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, e o senador Demóstenes Torres (DEM-GO). Lula tomou a atitude mesmo ante o argumento do superior de Lacerda, o general Jorge Felix, do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), ter afirmado que as maletas não eram capazes de fazer interceptações, só rastreamentos de grampos.
O ministro da Defesa continua firme no cargo, apesar de suas aleivosias serem paulatinamente expostas. Desmentido clamorosamente pelos fatos, Jobim, em encontro recente, teria dito ao presidente que foi induzido por um subordinado a sustentar a versão de que as maletas compradas pela inteligência e também pelo Exército, na verdade capazes apenas de fazer rastreamento, poderiam grampear telefones. É uma história inacreditável, mostra da forma leviana com a qual o titular da Defesa tratou do assunto. Na primeira reunião que selou o afastamento de Lacerda, Jobim sustentou a tese da maleta do grampo, segundo ele, com base em informações de “técnicos” do Exército, os quais não quis – ou não pôde – nomear. Tais técnicos jamais existiram.
Pego na mentira mais tarde, ante a exposição dos argumentos do general Felix e de Lacerda, Jobim foi obrigado a admitir ao presidente Lula ter sido colocado “numa fria” por um “aspone” (no jargão pejorativo do serviço público, um assessor inútil) do Ministério da Defesa. O tal “aspone”, simplesmente, retirou da internet a lista de cinco páginas com detalhes de três equipamentos supostamente comprados pela Abin, imprimiu e entregou ao ministro. Com esse papelucho nas mãos, o ministro partiu para cima do diretor da agência.
Lula, segundo fonte do Planalto, estaria visivelmente irritado com Jobim. Certo é que o presidente fez questão, em entrevista à TV Brasil, de elogiar Lacerda, que dirigiu a Polícia Federal até o ano passado, e acenar com sua reabilitação. Disse que o diretor-geral da Abin poderia retornar ao cargo “quando quisesse”. “Lacerda é uma pessoa que eu respeito como poucos neste País”, acrescentou.
O ministro Jobim, enquanto isso, enrola-se por si mesmo. Na quarta-feira 17, ao depor na CPI dos Grampos, sem poder sustentar a história das maletas grampeadoras, Jobim afirmou ter defendido o afastamento de Lacerda para dar uma resposta à “crise institucional” provocada pela divulgação da conversa supostamente interceptada entre Mendes e o senador Demóstenes Torres (DEM-GO). Seria cansativo lembrar aos leitores que, ao lutar bravamente pela saída do chefe da Abin, Jobim não só ajudou a aprofundar a tal crise como serviu ao principal propósito de toda essa milonga: tentar desmoralizar o trabalho da Operação Satiagraha. O fim da inútil discussão sobre se as malas grampeiam ou não talvez permita que as investigações sigam seu curso normal.
Nem a boa vontade da maioria dos parlamentares da CPI nem de parte substancial da mídia evitaram o constrangimento de Jobim durante o depoimento. O ministro não chegou a pedir desculpas pelo erro, mas confessou ter apresentado provas incipientes contra a Abin. Obrigado a fazer um malabarismo retórico, negou ter usado a lista do aspone para derrubar Lacerda. “Minha posição de que deveríamos afastar a cúpula da Abin não decorreu desse fato (os falsos equipamentos de grampo), mas de que agentes teriam participado da Operação Satiagraha”, afirmou. Outra mentira.
Até os mármores da rampa do Planalto sabiam que nem Lula nem o ministro Tarso Genro, da Justiça, estavam dispostos a afastar Lacerda por causa do envolvimento de agentes da Abin na Satiagraha. A Polícia Federal faz parte do Sistema Brasileiro de Informações (Sisbin), capitaneado pela Abin. Funcionalmente, pode requisitar espiões para operações policiais, como fez o delegado Protógenes Queiroz. O problema foi a decisão do delegado de não informar à direção da PF sobre o procedimento. Premido pela falta de apoio e com medo de vazamentos, Queiroz buscou na Abin o que não conseguia na PF: gente para tocar a investigação e prender, em 8 de julho, o banqueiro Daniel Dantas.
No fim das contas, o delegado Queiroz, difamado como insubordinado, dentro do governo, e maluco messiânico, por parte da mídia nacional, tinha razão. Na cúpula da Polícia Federal, havia, de fato, o risco de vazamento das informações sobre a Satiagraha. Na terça-feira 16, o delegado Romero Menezes, segundo homem na hierarquia da PF, foi preso sob a suspeita de antecipar detalhes da Operação Toque de Midas, deflagrada pela PF, em 11 de julho, contra o empresário Eike Batista, dono da MMX, acusado de fraudar licitações no processo de concessão de uma estrada de ferro no Amapá.
O delegado admitiu ter feito tráfico de influência na Superintendência da PF em Macapá, em favor de um irmão, José Gomes de Menezes, dono de uma empresa de segurança prestadora de serviços à EBX, subsidiária da MMX, no Amapá. O gabinete dele foi grampeado, legalmente, por nove dias e o inquérito aponta para uma ligação nebulosa de Menezes com os negócios de Batista. De acordo com informações da PF no Amapá, o vice de Luiz Fernando Corrêa teria pressionado a Superintendência a não mexer com um empresário “tão rico e influente” como Batista sem indícios “consistentes”. Talvez tenha se inspirado no exemplo do delegado Queiroz, afastado do inquérito da Satiagraha depois de ter mexido com Dantas.
Menezes havia participado, em 2004, do planejamento operacional da Operação Chacal, responsável pela apreensão do disco rígido (HD) do computador central do Banco Opportunity, de Dantas, no Rio de Janeiro. Na época, chegou a ser nomeado “porta-voz” da operação. Ele é amigo e um dos homens de confiança de Corrêa, de quem recebeu voz de prisão, bem ao estilo da nova PF, sem algemas, sem gravação de imagens e sem vazamentos de grampos. Em novembro do ano passado, Menezes e Corrêa viajaram juntos para um encontro da Interpol, em Marrakesh, no Marrocos.
Como afirmou CartaCapital na edição 513 (17 de setembro), há nos organismos de inteligência quem desconfie que Dirceu pode ter ficado a par das investigações nessa data e repassado a informação ao grupo de Dantas. Em depoimento à CPI dos Grampos, o banqueiro admitiu ter tomado conhecimento da Satiagraha, justamente, em novembro de 2007.
Não surtiu efeito a tentativa de Jobim de se esquivar sob o argumento da utilização de agentes da Abin por parte da PF, na Satiagraha. Foi o Ministério da Defesa que vazou, no mesmo dia da reunião de 1º de setembro, os detalhes da performance do ministro diante de Lula e dos outros representantes do chamado Conselho Político do governo.
No dia seguinte, toda a imprensa noticiou a atuação de Jobim no afastamento de Lacerda. Não houve nenhum desmentido do ministro nem da assessoria do ministério a respeito. Ao contrário, louvou-se, na mídia, o tirocínio de Jobim. A casa só iria começar a ruir depois da ação corajosa de dois generais do Exército.
Ainda no calor das declarações de Jobim na reunião do Palácio do Planalto, o general Felix negou a participação da Abin em esquemas de escuta telefônica, expediente vetado à agência por lei. Em vão. Na quarta 17, Felix deu o troco. Durante depoimento pela manhã à Comissão de Inteligência do Senado, e provavelmente já conhecedor dos laudos que dizem que os equipamentos da Abin não podem grampear, o chefe do GSI afirmou que o colega da Defesa iria apresentar mais tarde à CPI os resultados das avaliações técnicas. Jobim fez-se de desentendido e desconversou quando deputados cobraram a apresentação do laudo.
Além de Felix, o comandante do Exército, general Enzo Peri, também havia desmentido Jobim no calor dos acontecimentos. Peri arriscou um ato de insubordinação e mandou avisar que nenhuma das aquisições feitas pela Abin, via comissão de compras da força terrestre, continha grampeadores de linhas telefônicas. Pouca atenção se deu à declaração do comandante.
Já não era mais necessário, mas o argumento do ministro da Defesa esfarelou-se completamente na quinta 18. Perícia da Polícia Federal, assinada por dois engenheiros eletrônicos, constata o óbvio: os aparelhos não podem fazer grampo.
Mesmo assim, Jobim conta com o direito à dúvida negado a Lacerda, Felix e Queiroz, antecipadamente condenados por supostas “ações ilegais” na Satiagraha. Na CPI dos Grampos, por exemplo, o único a colocar o ministro contra a parede foi o deputado Vanderlei Macris (PSDB-SP). O parlamentar tucano estivera, pela manhã, na Comissão do Congresso onde o general Felix foi depor ao lado de Lacerda e do ex-agente do Serviço Nacional de Informações (SNI) Francisco Ambrósio, este último acusado pela revista IstoÉ de ser o responsável pelo cada vez menos provável grampo feito no STF. Lacerda voltou a negar a existência dos equipamentos e Ambrósio, outra vez, afirmou ter realizado apenas trabalhos burocráticos, de análise de informação, a pedido do delegado Queiroz.
Até a intervenção de Macris, Jobim tinha nadado de braçada na CPI, graças à postura reverencial do presidente da Comissão, Marcelo Itagiba (PMDB-RJ), e do relator Nelson Pellegrino (PT-BA). O ministro dava respostas rápidas sobre o equipamento de grampos da Abin e desviava para outros temas. Foi quando o deputado tucano interveio: “Ministro, foi feita uma perícia nos equipamentos da Abin?” Pálido, Jobim fez-se de desentendido. “Não sei”, afirmou.
Iniciou-se, então, o momento mais tenso do depoimento. Macris, primeiro, colocou em xeque as declarações anteriores de Jobim, em seguida modificadas na CPI, sobre os aparelhos de varredura comprados pela Abin. Em seguida, informou ao ministro da declaração do general Felix sobre o laudo dos equipamentos da agência, alegadamente entregue a ele para ser divulgado na CPI dos Grampos. “O senhor, então, desmente o general Felix?”, perguntou o parlamentar. Sem saída, Jobim negou conhecer o documento e alegou nada ter a ver com o assunto. “Essa divulgação não tem de ser feita por mim”, esquivou-se.
Apesar do vexame de Jobim, Lula sabe das conseqüências de derrubar um ministro do PMDB, aclamado pela mídia como salvador do “caos aéreo”, às vésperas das eleições municipais. Lula é refém do apoio dos peemedebistas no Congresso. Além disso, variados setores do PT querem ver a caveira dos responsáveis pela Satiagraha.
Há muita gente inconformada com Lacerda e Queiroz por causa do grampo onde o chefe de gabinete do presidente, Gilberto Carvalho, e o ex-deputado petista Luiz Eduardo Greenhalgh, lobista de Dantas, cuidam de interesses do banqueiro. Se o banqueiro for realmente condenado, dificilmente deixará de arrastar às portas do Inferno uma porção poderosa do Partido dos Trabalhadores. Dantas, aliás, continua a dar recados. Presidente da Comissão de Inteligência do Senado, Heráclito Fortes, líder da bancada de DD no Congresso, disparou uma provocação contra Lula. Perguntou ao general Felix se a Abin sabia das insinuações de que Dantas era sócio de Fábio, um dos filhos do presidente, em negócios no Pará. Dada sua intensa relação com a turma do banqueiro, Fortes não falou de graça.
Na CPI, ainda sob os questionamentos do deputado Macris, Jobim confirmou ter se encontrado com o ex-ministro José Dirceu três dias antes de o ministro da Defesa conseguir o afastamento de Lacerda, da Abin. Jobim não quis se estender sobre o assunto. Disse apenas ter recebido uma visita “de cordialidade” de Dirceu, de quem garante ter sido presenteado com uma caixa de charutos. Mais uma história esquisita, por várias razões.
Dirceu, agora um atribulado consultor internacional, foi acusado de manter ligações com Dantas a partir de um grampo (legal) feito durante a Operação Satiagraha. Na escuta, a namorada de Dirceu, Evanise Maria da Costa Santos, funcionária da Presidência da República, usa uma linha telefônica do Planalto para agendar um encontro do ex-ministro com Greenhalgh, conhecido por “Gomes” na quadrilha de DD.
Os dois se encontraram, secretamente, em um hangar da TAM, em Brasília, em 9 de maio, dois meses antes de a operação policial ser deflagrada. Dirceu nega ligações com o banqueiro. Em seu site, acusa CartaCapital de praticar um “jornalismo marrom”.

Encerrada a desastrada participação de Jobim na CPI, o presidente Lula iniciou um claro movimento para reverter os danos causados à imagem da Abin. A prova de que o Planalto percebeu as tentativas de manipulação do episódio em prol de investigados foram as declarações elogiosas de Lula a Lacerda. Resta saber, agora, qual a opinião do presidente a respeito de Jobim.

FONTE: http://www.cartacapital.com.br/app/materia.jsp?a=2&a2=8&i=2115

Nenhum comentário: