O dedo-duro de Valério
Num jogo tipicamente político e
grosseiramente ilegal, a Procuradoria-Geral da República vazou trechos do que
seria o teor da delação premiada do publicitário Marcos Valério, feita para
tentar se beneficiar, em setembro de 2012.
O alvo de Valério foi o
ex-presidente Lula, que a oposição espera que, pressionado, em algum momento
empunhe um revólver e atire contra o próprio peito.
Uma repetição da história como
farsa, após a tragédia vivida por Getúlio Vargas nos anos 1950.
Em outra época, em outro momento,
delação premiada expressava graficamente um dedo-duro apontado em alguma
direção. Era a deduragem.
A delação premiada, como lembra o
penalista Nilo Batista, chegou às legislações brasileiras, nos anos 1980, não
por acaso ao mesmo tempo em que foi adotada nos Estados Unidos.
“A delação premiada é um dos sinais do ‘vigilantismo’ e da ‘invasividade’ que
caracterizam os sistemas penais moldados após a crise do capitalismo
industrial. Ou seja, a vigência dos sistemas penais do neoliberalismo”, traduz
Batista.
Segundo Nilo Batista, essa
inovação foi recebida “com reservas” pelos melhores professores brasileiros,
tais como Jacinto Coutinho, Geraldo Prado, Aury Lopes, Fauzi Hassan Choukr e
Walter Barbosa Bittar. Mas reação semelhante ocorreu ao longo do mundo. Batista
cita Hassemer, na Alemanha, e Ferrajoli, na Itália.
“A primeira e mais essencial
crítica tem a ver com a inversão do estatuto ético da traição. Entre nós, essa
crítica não prosperou fora dos meios acadêmicos”, diz Nilo Batista, perplexo
com o fato de que a lei valorize positivamente o alcaguete.
A surpresa não é tanta. A cultura
brasileira fez recentemente de um torturador o herói nacional. Assim o Capitão
Nascimento foi aplaudido sem constrangimentos.
Isso arranca a ironia do sentimento do penalista: “Esperemos com resignação pela
lei que trocará o nome da cidade mineira de Tiradentes para Joaquim Silvério
dos Reis. Um delator bem premiado”.
Mas a questão moral é apenas um
efeito colateral secundário da situação. Se fosse apenas isso, não seria tão
preocupante.
“A história nos ensina que a
imoralidade de uma lei às vezes não se revela claramente aos contemporâneos de
sua promulgação. Pior que isso é a baixa qualidade da prova que sustenta a
chamada delação premiada”, anota Batista.
O nome que os clássicos
tratadistas da prova davam às delações premiadas, providas desde a Antiguidade
pelos traidores e alcaguetes, era corréus. O primeiro elemento de descrédito do
corréu, no seu isolamento, é quando a denúncia vem desacompanhada de qualquer
base probatória.
Batista explica que, nesse caso,
“repete-se o problema lógico da testemunha única: a imputação provém da
testemunha única e a prova da imputação também”.
Ou seja, a imputação seria
provada por ela mesma. Chama-se a isso de “petição de princípio”.
“Esse descrédito se potencializa
quando o chamado corréu tem o objetivo colateral de minimizar sua
responsabilidade. Seja atribuindo atos próprios ao delatado (“Quem atirou foi
ele, eu só estava perto”), seja reduzindo sua liberdade de atuação (“O pedido
dele era uma ordem para mim”), seja obtendo qualquer vantagem como na delação
premiada”, diz Batista.
Os corréus, ou delatores, não
podem servir como fundamento exclusivo da condenação. Batista cita inúmeras
decisões do STF nesse sentido. Mas, ao ler os jornais de hoje, ele busca
inspiração em Machado de Assis e balbucia um “pequeno verso”: “Mudaria o
Supremo ou mudei eu?”
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