por Roberto Amaral
A
separação de poderes, desde Montesquieu, baseia-se, nas democracias
representativas, como a brasileira, em dois pólos de difícil equilíbrio, pois,
uma perna é a igualdade quimérica e outra é a assimetria real, derivada da
fonte diversa da legitimidade de cada um.
Pelo menos na teoria, esses poderes, para
serem iguais e interdependentes (e não independentes) precisam conviver num
sistema de pesos e contra-pesos segundo o qual cada um, de per si, limita o
arbítrio (e não o poder) do outro. Assim, o Executivo tem seus atos
fiscalizados pelo Legislativo, e a legalidade desses atos é controlada pelo
Judiciário, que, igualmente, controla a constitucionalidade das leis, cuja
elaboração é prerrogativa exclusiva do Poder Legislativo. O Executivo por meio
das Medidas Provisórias e o Judiciário brasileiro, principalmente na sua fase
atual, rompendo com a formação positivista de nosso Direito, teima em legislar,
assumindo poderes que lhe são vedados pela Constituição de que o Judiciário
deve ser guardião.
O Judiciário, no Brasil, também foge à regra,
por não conhecer controle externo.
Se não conhece a fiscalização a que são
obedientes os demais poderes, a quem os atos judiciais estão submetidos? Quem
lhe impõe limites? Não se diga que é a Constituição, pois que esta reina sobre
todos.
Separando e distinguindo os poderes, e,
consequentemente, impondo-lhes limitações, há, ainda e principalmente, a origem
de cada um. Ao contrário do Executivo e do Legislativo, o Judiciário, no
Brasil, é o único dos poderes republicanos que desconhece a única legitimidade
conhecida pela democracia, aquela derivada da soberania popular. Em vez de
mandatários da vontade da cidadania, expressa em eleições periódicas das quais
derivam mandatos certos, os membros do Judiciário – agora me refiro aos
Tribunais superiores, a começar pelo STF –, são nomeados pelo Presidente da
República; em vez de exercerem mandatos a termo (como os titulares dos poderes
Executivo e Legislativo em todas as instâncias) suas investiduras relembram a
monarquia, pois são vitalícias.
Ao contrário de governantes e legisladores,
são inalcançáveis, o Judiciário como instituição e os ministros como juízes,
livres daquele controle externo que eles próprios exercem sobre o Executivo.
São como o rei na monarquia: irresponsáveis, isto é, não respondem pelos seus
atos.
Açulado por uma direita impressa
inconsequente, vem, de uns tempos até aqui, o TSE e, principalmente, o STF,
exorbitando de seus poderes, seja julgando para além da lei, seja criando
direito novo, construindo a instabilidade jurídica que afeta a segurança dos
cidadãos, pois todo o direito vigente pode ser alterado, de cabo a rabo, numa
simples assentada – seja a presunção da inocência nos julgamentos criminais,
seja o direito de defesa, institutos que nos separam da barbárie.
Sem discutir o mérito das decisões, o fato é
que as recentes sessões da Suprema Corte (refiro-me especificamente à novela do
“mensalão”) se transformaram em lamentável reality show, donde a
espetacularização do julgamento, cada juiz procurando desempenhar seu papel
como ator preocupado com as câmeras e a audiência, embora não recebam cachê nem
concorram a prêmios. Louvo a transparência para lamentar o conteúdo.
O juiz isento, sereno, incumbido pela
sociedade (pela sociedade?) de, em seu nome, julgar, transfigura-se em promotor
raivoso, e raivosos, os julgadores se desentendem. No mesmo diapasão das
agressões aos réus, desrespeitados, desrespeitam-se e agridem-se entre si.
O que foi feito da liturgia da função nobilíssima?
Tenho para
mim que na raiz do empobrecimento do Supremo – que já teve Adauto Lúcio
Cardoso, Ribeiro da Costa, Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e
Silva – para não falar em Orozimbo Nonato, está a ausência de biografia de seus
titulares. Assim, pobres, tentam, cada um a seu modo, construir sua história no
exercício da judicatura, e às custas dela; desatentos aos Anais da Justiça,
estão voltados para a glória fugaz dos refletores, a confirmar o dito célebre
segundo o qual todo anônimo tem direito a dez minutos de fama.
Tudo isso encanta a direita impressa e seu
encantamento seduz os atores. Autoritária, preconceituosa e racista, nossa
direita não admite a emergência das massas. Isto é o que está na raiz da crise
que se procura criar, artificialmente, para deter o avanço social, ainda que
seu preço seja a fragilização das instituições democráticas. Nas vezes
anteriores, bradando o mesmo cantochão, essa mesma direita (ela não muda)
trouxe para as ruas os tanques e, sempre que pode, golpeou a democracia, em
nome dela. Foi assim na segunda deposição de Getúlio, em 1954, e na deposição
de Jango em 1964. Presentemente, os tanques estão indisponíveis e as baionetas
ensarilhadas, e a chefe do Poder Executivo se encontra protegida por inédito
apoio popular. Na ausência de outra alternativa, desmoralize-se a essência da
democracia, a política e os políticos, judicialize-se a política, e destrua-se
o Poder Legislativo, o mais vigiado de todos os poderes, o mais desarmado de
todos os poderes. Destrua-se a política e a derrocada democrática virá por
consequência. Essa é a ordem. E foi sempre assim.
Se não é mais possível a ditadura da japona,
que venha o autoritarismo da toga.
Ébrios de vaidade, nossos ministros – na sua
maioria (louvem-se as poucas exceções) – não se dão conta de que os elogios
fáceis são igualmente fugazes e falsos.
Sabe o STF que não lhe cabe decretar a perda
de mandato de representante eleito, pois esse mandato foi outorgado pela
soberania popular. A perda de mandato é decreto político privativo da instância
política. No caso de parlamentar, é prerrogativa e dever da Casa à qual
pertença o imputado. Mas, provocando a dignidade de outro Poder, insiste-se em
feri-lo e para fazê-lo atropelam a Constituição:
“Art. 55 – Perderá o mandato o Deputado ou
Senador:
…
VI – que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado.
…
§ 2º – Nos casos dos incisos I, II e VI a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de Partido Político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa”.
…
VI – que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado.
…
§ 2º – Nos casos dos incisos I, II e VI a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de Partido Político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa”.
O fato, inquestionável, de que o STF é o
último intérprete da Constituição, não o autoriza a reescrevê-la, para dar
sustentação jurídica a uma aberração. Insaciável, Poder que procura crescer
alimentando-se do poder dos outros poderes, o mesmo STF decide interferir na
domesticidade do Congresso Nacional, quando liminar suprema de um ministro,
determina a alteração da pauta de votações, impedindo a apreciação de veto da
Presidente da República.
Essas considerações me vêm à consideração
após ver e ouvir o voto do nobre e ilustre ministro Celso de Mello, decano da
Casa. Sua Excelência não se conteve com o seu voto puro e simples. Resolveu
recheá-lo com um discurso inapropriado de admoestações e ameaças ao Poder
Legislativo e ao seu presidente.
A quais forças está servindo quem persegue um
conflito institucional?
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